O-Fim-do-Pó
O fim do pó

por Luciana Pinsky

Do meu lado, energia, força e vontade. Do lado dele, inércia, conforto e sujeira.

Minha missão era expor sua essência, removendo adornos penetras. Arranquei aquele pó com gosto. Verifiquei tudo o que saiu do meu tapete com um misto de nojo e vitória. Nojo por conviver com aquilo. E vitória por deixá-lo limpo de vez.

Ah, a ilusão. Ela nos leva a acreditar em quimeras e também duvidar da resiliência do pó. Sim, porque falam das baratas, que elas sobreviveriam a bombas atômicas, que podem ficar submersas sei lá quantos minutos e tal. Mas pó, meus amigos e minhas amigas, pó é sinônimo de persistência, perseverança e, claro, resiliência. Ao pó voltarei? Como, se do pó nunca saí?

No dia seguinte da empreitada, lá fui eu de novo, com as mesmíssimas energia, força e vontade tirar o pouco que poderia ter sobrado. O tapete parecia desdenhar de mim, enquanto o aspirador extraia partículas pretas, brancas e de cores indefinidas deixando o resultado final do meu trabalho tão ou mais asqueroso do que da primeira vez.

Agora sim. Agora venci esse tapete, o único que me permiti ter em casa. “Alérgicos não podem certos luxos, como carpetes, tapetes, cortinas e bichos peludos”, a médica me alertara anos antes. E eu, obediente, sempre, segui à risca.

Até a chegada do tapete. Lindo, moderno, convidativo, nem grande, nem pequeno. Assim que entrou tomou conta da sala, dominando sofá e poltronas. Jamais me aventuraria em compra tão perigosa, mas ele foi presente. E presente assim não se recusa. Para evitar broncas da alergista, eu o mandava à lavanderia a cada seis meses.  Mas ainda assim desconfiava do que suas fibras vertiginosas escondiam. E decidi eu mesma resolver a questão.

E assim se seguiu. Ele, inerte. Eu, enérgica. Indiferente às minhas incursões diárias, ele continuava a soltar uma massa escura disforme e horripilante. Minha energia foi minando, meu tempo escasseando. Pensei em desistir, mandar o tapete fora e ficar só com o chão de madeira, tão mais confiável.

Faltou-me coragem. O tapete encontrou seu lugar. E o lugar transformou-se para ele. Assim, dia após dia lá estava eu com a arma de arrancar sujeira nas mãos. E via, com horror, perplexidade e certo encantamento mórbido, que o pó de hoje era igual ao de ontem e de anteontem. Ainda.

A luta já contava seis meses quando o pó começou a rarear. O início do fim foi sutil, mas não passou despercebido, já sensível que eu estava aos detalhes, às cores e até à consistência do que era arrancado com a persistência que só os quarentelados conhecem. E, finalmente, um dia reparei que a sujeira já era semelhante ao chão de madeira: presente, mas discreta.

“Vitória!”, gritei e lancei um olhar para o tapete tão profundo quanto a força diária do tubo em suas fibras. Ele não era mais o mesmo. Claro, dirá você, finalmente estava limpo. Sim. Mas só então me dei conta que o pó não era um estranho invasor. Ao contrário, fazia parte de sua personalidade. Sem aquilo que lhe foi arrancado sem dó nem piedade por meio ano, ele murchara. Era apenas um esqueleto de pano estendido no chão.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho – http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/

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