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Ponte do silêncio

Por Luciana Pinsky

Carro, estrada, cheiro de carro, calor, náusea, parar (vai, vai), vomitar. Por vezes dava para controlar. Mas tinha de olhar para frente, só para frente, como minha avó me ensinou: “Não desvie o olhar. Encare lá para frente e não vire o rosto. Só pare quando chegar”. E funciona até hoje. Quase sempre.

E o trânsito? O carro estático, minha mãe reclamando da marginal, podia ter voltado de ônibus, mas essa hora é perigoso, filha. Trem vai rápido. Mas não resolve, ele para a 2 quilômetros de casa. Tornei-me independente quando descobri a bicicleta para trajetos urbanos. Mas e para ir mais longe?

Por mais que adorasse viajar, estar em outros lugares, minha relação com carro sempre foi conflituosa. Era o mal necessário para chegar onde queria, na falta de transportes mais civilizados (e que não me enjoassem).

Isso até o dia da ponte João Dias.

Ele dirigia. E dirigia devagar. Como devagar sempre tocou a vida. Falava devagar, ria devagar, gostava devagar, desgostava mais devagar ainda. Eu estava ao lado, por vezes ouvia o que me dizia, mas basicamente curtia a viagem lenta por uma marginal excepcionalmente livre. Talvez por conta do momento incomum.

A ponte do Jaguaré, escuríssima. Na cidade universitária podia fazer o anel, chegar em algum lugar da Praça Panamericana, talvez um sanduíche, a fome crescia. Só pensei. Na Rebouças vertigem, mas não enjoo. As luzes vinham e passavam, traços de outros veículos – uma cor, um zumbido – mas nada ficava lá com a gente.

Cidade Jardim? Como cheguei aqui? Você me contava de um filme que viu. Ou era livro? Sonho? Sonho sim. Eu entrava no sonho e já não sabia se estava no seu sonho ou na avenida. Avançamos. Ali sairíamos para Bandeirantes, com sua discreta mas indisfarçável inclinação rumo a outros lugares. Não. Você seguiu. Qual minha avó, sem virar. Exceto que seus olhos, de soslaio, procuravam-me. “Cuidado para não enjoar”, quase alertei. Mas não. Ele que sabe de si, quem sabe é homem que não se abala?

Ponte do Morumbi leva à minha irmã, ia comentar. Mas a boca só murmurou o calor de agosto. Até onde iríamos? Tem combustível para tanto? Será que não faríamos falta, será que pendurei a roupa da máquina, será que as frutas vão estragar? Fechei os olhos e frutas, roupas e falta desapareceram. E daqui para frente pouco lembro. Lembro sim, mas não há palavras, porque palavras não chegam. Em uma São Paulo tão barulhenta são poucos e inconfundíveis seus silêncios. Precisamos deles. Por isso, peço, imploro. Por favor, Prefeito, mude o nome dela. Não é João Dias. É ponte do Silêncio.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho – desenhador.com.br )

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